A substituição das atividades pedagógicas/acadêmicas presenciais por atividades remotas, em sentido estrito, e híbridas, por longo período, nos anos de 2020 e 2021, motivada pela pandemia da covid-19, fez aflorar intensamente grave problema que já se patenteava, mas, até então, quase que restrito à educação a distância: a indevida apropriação da imagem, da voz e da produção intelectual docentes.
Desde meados de 2020, em alguns milhares de escolas privadas, de nível básico e superior, em âmbito nacional, multiplicam-se arremedos de “acordos” individuais que têm como única finalidade a cessão incondicionada, por tempo indeterminado e sem qualquer contraprestação financeira, em escandaloso estelionato desses direitos. Trata-se de afronta total e direta aos princípios da probidade e da boa-fé que devem reger as relações contratuais, tanto na celebração quanto na execução dos contratos, conforme determina o Art. 422 do Código Civil (CC); à expressa proibição de enriquecimento sem causa, que se estampa no Art. 884, igualmente do CC; às condicionantes estipuladas pelo Art. 468 da CLT para que se empreste validade às alterações contratuais, mesmo que supostamente acordadas pelas partes, como nos casos sob discussão; e, ainda, aos comandos da Lei N. 9.610/1998, que regulamenta o direito autoral.
Enredados em meio às crescentes dificuldades que lhes são impostas pela legislação trabalhista, pelo STF – há alguns anos, persona do capital, como registra o desembargador do TRT da 10ª Região, Grijalbo Fernandes Coutinho, no seu instigante e providencial livro “A justiça política do capital” – e, em crescente medida, pela Justiça do Trabalho, que caminha celeremente da luz para as trevas, em suas três instâncias, especialmente no TST, os sindicatos pouco puderam fazer, até agora, para enfrentar à altura o comentado estelionato.
Não obstante esse cenário de horrores, no tocante à questão ora posta para debate, acaba de se abrir relevante fenda na jurisprudência trabalhista, que se reveste da condição de promissor alento para o seu devido, inadiável e necessário enfrentamento na esfera judicial. Essa fenda foi aberta pela 39ª e pela 40ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, em ações civis coletivas ajuizadas pelo Sinpro Minas. A primeira, contra o Colégio Vimasa S/A, processo N. ACC 0010593-21.2021.5.03.0139; a segunda, em face da Associação Nóbrega de Educação e Assistência Social — Aneas, Processo N. ACC 0010129-91.2021.5.03.0140. Em ambas, “acordos” individuais contendo a comentada cessão incondicionada e graciosa da imagem, voz e produção intelectual foram declarados nulos de pleno direito.
É fato que essas decisões representam apenas e tão somente o primeiro rumo à comprida estrada que vai ao TRT, como próxima estação, e ao TST, como seguinte, podendo, pelo andar da carruagem, chegar ao STF, que admite todo processo com perspectiva de fazer derruir os direitos fundamentais sociais. No entanto, não deixam de se constituir em passo firme, orientador e promissor rumo à coibição, em definitivo, de mais essa prática nefasta, que se dissemina como rastilho de pólvora.
A sentença proferida pela 40ª Vara do Trabalho, de BH, que, inclusive, serviu de parâmetro para a oriunda da 39ª Vara, assenta, dentre outros fundamentos:
“[…] O Sindicato dos Professores do Estado de Minas Gerais propõe Ação Civil Coletiva insurgindo-se contra o termo aditivo que os professores da ré subscreveram autorizando o uso de suas imagens e voz. Em resumo, pede a nulidade desse aditivo contratual. Seus principais argumentos são: o uso dos recursos eletrônicos para alunos de terceiros ou que não inscritos como alunos dos docentes violaria a cláusula 12ª das Convenções Coletivas de Trabalho que tratam do limite de alunos na sala de aula; violação ao artigo 468 da CLT; fraude por causa da imposição da cessão de direitos autorais que não foram livremente concedidos na forma do art. 49 da Lei 9.610/98. A ré, de seu turno, assegura que a adesão do termo aditivo foi livre, sendo que os professores que não aderiram não foram penalizados. Acrescenta que o uso da imagem e voz é restrito e somente devem ser utilizados pelos atuais alunos que frequentam as aulas dos docentes. Vejamos. Não obstante a ré sustente que o uso dos direitos de imagem e voz sejam restritos, e quiçá essa fora a real intenção da empregadora, é certo o aludido Termo Aditivo que os professores subscreveram implementa alterações nos seus contratos de trabalho com a transferência irrestrita de imagem e voz para a ré, a qual pode utilizar perante terceiros, inclusive, com finalidade comercial, sem a respectiva contrapartida financeira para os empregados. Ora, isso por si só, a hipótese dos autos enquadra-se na nulidade prevista no art. 468 da CLT. Ademais, os direitos da personalidade dos empregados devem ser preservados, ao passo que sua cessão livre, sem qualquer controle dos destinatários das vídeo aulas, permite uma exposição que ultrapassa os limites do art. 5º, X, da CR/88 e art. 46 da Lei 9.610/98. Finalmente, o parquet laboral manifestou também pela irregularidade do termo aditivo transferindo os mencionados direitos de personalidade dos professores para a ré. Portanto, julgo procedente o pedido para declarar a nulidade do termo aditivo de fls.171/172 subscritos pelos professores da ré. A nulidade tem eficácia imediata, na forma dos artigos 300 e seguintes do CPC […]”.
Já a que tramita na 39ª Vara assevera:
“[…] Assim como já bem destacado no precedente sobre a mesma matéria, da lavra da Juíza Renata Lopes Vale, em atuação na 40ª Vara do Trabalho desta Capital […] Não há falar em liberdade ou espontaneidade por parte dos professores substituídos, eis que o só fato de estarem com seus contratos ativos lhes impõe o temor reverencial de que, não assinando, muito provavelmente terão seus contratos descontinuados pela escola, pois a parte ré estabeleceu o seu novo padrão contratual em tempos de crescente virtualização do ensino. Observo que a lista de Id nº 04692fe juntada com a defesa, sem qualquer referência além do nome dos professores, unidade e data de admissão, não comprova que tais professores se recusaram expressamente a assinar o termo aditivo em questão. Diante do cenário real decorrente do termo aditivo em questão, é de incomparável clareza que a hipótese dos autos encontra óbice na regra do art. 468 da CLT, segundo o qual ‘só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia’. Vale destacar que os direitos da personalidade da pessoa humana devem ser preservados por mandamento constitucional, não sendo diferente em relação aos trabalhadores na estreita relação contratual trabalhista. Dessa forma, eventual cessão dos direitos de imagem, de forma indiscriminada e sem qualquer controle de quem seriam os verdadeiros destinatários das aulas gravadas, ultrapassa sim os limites do art. 5º, X, da CR/88 e do art. 46 da Lei 9.610/98. Diferente seria se fosse estabelecida uma contrapartida específica para a mencionada cessão, em prol do equilíbrio contratual, com real controle por parte dos cedentes em termos de quantas são as visualizações de suas aulas gravadas. Ante o exposto, julgo procedente o pedido para declarar a nulidade do termo aditivo de Id nº c0201b3, em relação a todos professores da ré, subscritores ou não do mencionado termo. Dada a relevância, atualidade e urgência da questão, defiro a tutela de urgência para determinar a eficácia imediata da nulidade ora declarada […].”
O MPT da 3ª Região, MG, em judiciosa manifestação nos autos do processo que tramitou na 40ª Vara, assim se posicionou, em excertos:
“[…]
II – FUNDAMENTAÇÃO II.1 – DA LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO SINDICATO A entidade sindical detém legitimidade ativa ad causam para propor ação civil pública, conforme interpretação sistemática da Constituição da República (art. 8º, III, combinado com o art. 129, III, e seu parágrafo 1º), da Lei de Ação Civil Pública (art. 5º), e do Código de Defesa do Consumidor (art. 82). Ressalte-se que a questão atinente à ampla substituição processual do sindicato na defesa dos trabalhadores encontra-se superada pela doutrina e jurisprudência. Confira-se: MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO PROCURADORIA REGIONAL DO TRABALHO – 3ª REGIÃO 3 “SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL – SINDICATO – LEGITIMAÇÃO AD CAUSAM – O Excelso Supremo Tribunal Federal, guarda e intérprete máximo da Constituição, vem decidindo que o inciso III do art. 8º da nossa Carta Magna prevê a hipótese de legitimação extraordinária, admitindo a substituição processual pelos sindicatos, sem qualquer restrição. Neste sentido é o acórdão proferido no RE 202.063-0 PR, relatado pelo eminente Ministro Octávio Gallotti. O empregado, parte fraca na relação de emprego, está permanentemente sujeito à coação por parte do empregador, conforme presunção de direito estabelecida pelo art. 468 da CLT. O trabalhador necessita do emprego para sobreviver com sua família e, para não perdê-lo, tolera a ofensa a seus direitos. Exatamente para possibilitar a reparação imediata dessas lesões, sem a necessidade de expor-se o empregado como autor da ação, é que a Constituição garantiu aos sindicatos, sem qualquer restrição, a legitimação extraordinária para, como substituto dos componentes da categoria profissional, ajuizar ações objetivando resguardar os seus interesses individuais e coletivos. […] Percebe-se com extrema clareza que não há no ordenamento jurídico trabalhista brasileiro restrição quanto à utilização da legitimação extraordinária ao sindicato da categoria, como no caso em tela, que se refere à defesa de interesses coletivos. […]”
“EMENTA: PROCESSO CIVIL. SINDICATO. ART. 8º, III DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. LEGITIMIDADE. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. DEFESA DE DIREITOS E INTERESSES COLETIVOS OU INDIVIDUAIS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. O artigo 8º, III da Constituição Federal estabelece a legitimidade extraordinária dos sindicatos para defender em juízo os direitos e interesses coletivos ou individuais dos integrantes da categoria que representam. Essa legitimidade extraordinária é ampla, MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO PROCURADORIA REGIONAL DO TRABALHO – 3ª REGIÃO 4 abrangendo a liquidação e a execução dos créditos reconhecidos aos trabalhadores. Por se tratar de típica hipótese de substituição processual, é desnecessária qualquer autorização dos substituídos. Recurso conhecido e provido.” (STF – RE 193.503/SP – Pleno – Rel. Min. Carlos Velloso – DJU 1 24.08.2007) No caso em tela, a ação proposta é um importante instrumento que potencializa o princípio constitucional de acesso à justiça pelos trabalhadores substituídos. Não seria lógico que centenas de trabalhadores ajuizassem ações individuais a fim de pleitear os direitos defendidos. Certamente, seriam inúmeras decisões, muitas conflitantes, trazendo prejuízos para todos, aumentando ainda mais a incerteza jurídica acerca do direito vindicado. Sem contar a demora na prestação jurisdicional e a sobrecarga desnecessária da Justiça do Trabalho, causando prejuízos a todos os jurisdicionados, o que não se coaduna com a moderna processualística. Assim, sendo pacífico o reconhecimento da legitimidade do ente sindical para pleitear, em juízo, direitos coletivos, deve ser rechaçada a preliminar aventada em defesa. […]”
“II.5 – DO DOCUMENTO INTITULADO “TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO GERAL DE IMAGEM, SOM DA VOZ E/OU NOME DO COLABORADOR E/OU PROFESSOR” Analisando o Termo Aditivo encaminhado aos docentes da reclamada, constata-se que há significativa alteração no contrato de trabalho do professor, onde a imagem, voz e nome dos professores, passam a ser propriedade da reclamada que as poderá utilizar inclusive perante terceiros e após o distrato, já que não houve estabelecimento de prazo, sem qualquer remuneração respectiva. Com efeito, as cláusulas do instrumento são claras quanto a apropriação imaterial da reclamada em relação aos substituídos.
Importante registrar que, buscando coibir práticas como essa e garantir a dignidade do trabalho do professor no momento atual em que o ensino remoto se mostrou como única possibilidade em razão da pandemia do COVID-19, a Procuradoria Geral do Trabalho publicou a NOTA TÉCNICA – GT COVID 19 – 11/2020 para orientar a atuação do Ministério Público do Trabalho na defesa da saúde e demais direitos fundamentais de professoras e professores quanto ao trabalho por meio de plataformas virtuais e/ou em home office, cuja juntada ora se requer.
[…]
Com efeito, assinado o documento, os bens imateriais do docente (imagem, voz e nome) ficam à disposição ad aeternum da reclamada, sem que este possa exercer qualquer controle sobre a sua propagação. A par disso, destaca-se o direito do docente à preservação e inviolabilidade da sua intimidade, à vida privada, à honra, à sua imagem, art. 5º, X, da Constituição Federal que no caso concreto está nitidamente violado.
[…]
III) CONCLUSÃO Com base nos argumentos expendidos, o Ministério Público do Trabalho opina pela procedência dos pedidos autorais, declarando-se nulo de pleno direito o documento intitulado ‘Termo de Autorização de uso geral de imagem, som da voz e/ou nome do colaborador e/ou professor’ encaminhado pela reclamada aos substituídos, na forma requerida na inicial”.
Eis a síntese do famigerado “termo aditivo” imposto aos professores empregados da Aneas:
“Eu, …, doravante denominado(a) simplesmente de ‘Autorizante’, na melhor forma do direito, de maneira livre, espontânea, sem qualquer vício de consentimento ou de vontade. AUTORIZO A ASSOCIAÇÃO JESUÍTA DE EDUCAÇÃO E ASSISTÊNCIA SOCIAL/COLÉGIO LOYOLA, com sede na Av. Contorno, 7919, Cidade Jardim, Belo Horizonte – MG, inscrito no CNPJ/MF sob o n°. 33.544.370/0011-10 ou a quem ele representar, doravante denominado simplesmente de ‘Autorizado’, a fazer uso da minha imagem, som da voz e/ou nome, captada a partir desta data, mediante a observação das seguintes condições:
1. A utilização da imagem, som da voz e/ou nome do Autorizante será permitida para fins institucionais, jornalísticos, históricos, acadêmicos, educacionais, informativos, sociais, de maneira gratuita, não onerosa, por prazo indeterminado, em caráter definitivo, inequívoco, irrestrito, irretratável e de abrangência global, incluindo internet e redes sociais.
2. A autorização ora concedida se estenderá a eventuais parceiras, joint ventures, sociedades de propósitos específicos, outras empresas do mesmo grupo econômico do Autorizado, mesmo que futuras ou provenientes de fusões, aquisições, incorporações, cisões ou qualquer outra operação societária que possa alterar a estrutura atual do Autorizado em razão de suas atividades.
3. O Autorizado poderá praticar os seguintes atos relacionados com o a imagem, som da voz ou nome do Autorizante:
a) Captar por intermédio de qualquer mecanismo ou meio tecnológico disponível para tanto;
b) Editar, reeditar, tratar, modificar, alterar, recortar, compilar, agrupar ou de qualquer modo complementar o conteúdo captado;
c) Transferir, migrar, deslocar, alterar ou de qualquer forma mudar o formato ou extensão do suporte ao qual o conteúdo tenha sido capturado, seja de físico para digital, digital para físico ou de digital para digital (mudança de tipo de arquivo digital);
d) Transmitir o suporte que contenha conteúdo autorizado por qualquer meio, seja eletrônico, digital, magnético, seja fibra óptica, ou qualquer outro que venha a ser inventado;
e) Armazenar, agrupar ou de qualquer forma organizar o suporte em que esteja inserido o conteúdo autorizado, seja em banco de dados, servidores internos, externos, seja de maneira integral ou fracionada;
f) Veicular ou distribuir em mídia impressa ou digital, em formato físico ou pela internet, podendo o conteúdo autorizado ser disponibilizado em redes sociais, sites de compartilhamento de imagens, vídeos ou de arquivo de som, seja por meio de aplicativos, arquivos executáveis, editáveis ou não, ringtones, ícones e/ou wallpapers (papel de parede do computador, tablet e celular), e-books (livros em formato eletrônico) ou audiobooks, seja por intermédio de computadores pessoais, celulares, smartphones, tablets, laptops ou qualquer outro dispositivo que possa reproduzir, armazenar, compartilhar, editar ou receber tal conteúdo, bem como em ambientes de Educação a distância (EAD) e no portal escolar;
g) Utilizar, reproduzir, publicar ou veicular o conteúdo autorizado, mesmo que em anúncios impressos ou digitais, em mídias ou veículos de comunicação de massa, desde que esta divulgação esteja relacionada diretamente com a disseminação de conhecimento, estímulo a cultura, ou ainda na realização de promoções e eventos que, de alguma forma, possam passar a mensagem ao público geral sobre o uso do conteúdo autorizado para fins sociais, educacionais, acadêmicos, históricos ou institucionais;
h) Transferir, alienar ou doar a titularidade do conteúdo autorizado, a qualquer momento, para qualquer pessoa física ou jurídica, nacional ou estrangeira, seja em razão de reestruturação societária, fusão, cisão ou qualquer outra operação que ocasione a transferência dos ativos do Autorizado.
4. Declara o Autorizado que estão ressalvados os direitos do Autorizante sobre a integridade da sua honra, boa fama ou a respeitabilidade, sendo vedada a utilização da imagem, som da voz ou nome desse para fins comerciais.
5. Fica expressamente convencionado que apenas será feita a menção ao nome do autor da obra em que contiver o conteúdo aqui autorizado quando sua publicação assim o permitir, ou no formato de metadados do arquivo quando aplicável ao suporte eletrônico, ressalvando-se os casos em que as dimensões disponíveis, o espaço ou as tecnologias envolvidas não permitirem a direta associação.
6. O Autorizante declara que exime o Autorizado de qualquer responsabilidade pelo uso indevido de sua imagem, som da voz ou nome por terceiros […]”.
É hora de a louvável e necessária ação do Sinpro Minas espelhar a de todos os sindicatos de professores que enfrentam essa fraudulenta e danosa prática e que ainda não adotaram medida judicial para coibi-la.
Que assim seja feito, com brevidade!
Fonte: José Geraldo de Santana Oliveira, consultor jurídico da Contee