Eu sei que o comércio incorporou ao calendário e que os restaurantes fazem pavorosos jantares temáticos. Ainda assim vou repetir: o Dia Internacional da Mulher não é uma data comemorativa em sua essência e reduzi-lo a isso é ofensivo para com as mulheres, ainda que muitas não se sintam diretamente ofendidas.
O Oito de Março é um dia para lembrar e para intensificar a luta pelo fim das várias violências sofridas por mulheres de todas as idades, raças, orientações sexuais e religiões em todo o mundo. É um dia de reflexão sobre nosso papel na sociedade, sobre o porquê das desigualdades e sobre os rumos à seguir.
Assim sendo, podemos dar início a um pequeno transtorno, um debate incômodo, que lhes parece?
Falemos de “pequenas violências”, de direitos que nos são negados diariamente. Deixemos de lado as violências óbvias e gritantes, aquelas que qualquer criatura minimamente civilizada reconhece a quilômetros tais como o os estupros, espancamentos e assassinatos. Em vez destas vamos falar de três “bobagens”, como costumam dizer às nossas costas, três direitos tão óbvios quanto relativizados.
1 – O Direito de alimentar.
Vale a pena começar com esse. A maternidade é descrita por nossa sociedade patriarcal e cristã como a maior das dádivas, o grande presente para todas nós. Só essa descrição já poderia nos conduzir por um debate essencial sobre violência contra a mulher. Como não queremos falar destas violências (são tantas, podemos escolher) e sim daquelas pelas quais somos ridicularizadas quando ousamos reclamar vamos pular direto para a amamentação.
A amamentação é descrita às futuras mamães como obrigatória, você DEVE amamentar, seu leite é IMPRESCINDÍVEL para o bebê. Mesmo que sua jornada de trabalho não comporte, que você adoeça no puerpério, que sinta muita dor e desconforto, mesmo que simplesmente não tenha leite você TEM que amamentar, ou arcar com a “verdade absoluta” de que seu bebê será mais indefeso, menos saudável e não vai se desenvolver à contento, claro. Ok. Mensagem recebida e assimilada.
Aqui começa uma nova cruzada e o ponto em que queremos chegar: Onde uma mãe pode amamentar seu filho? Se você está boquiaberto/a com minha pergunta saiba que nós mães também ficamos pasmas ao descobrir que amamentar um bebê em um local público pode se transformar em um imenso problema. Mesmo exercendo a nobre função de alimentar, mesmo nesse momento sem NENHUMA conotação erótica, o seio feminino estando em parte exposto para a amamentação é acusado de exibicionismo desnecessário, de ser “meio nojento”, “meio constrangedor”, e claro “distrair os homens”. Tanto isso é verdade que pipocam em vários estados e no próprio Congresso Nacional proposituras de parlamentares feministas para a garantia deste que não é direito da mãe apenas, mas também e principalmente da criança: amamentação em livre demanda, quando e onde precisar ser feita.
2 – Direito a sentir-se confortável dentro das próprias roupas.
O que eu visto é problema de quem?
A resposta é: de todos. Minha vestimenta cotidiana precisa da aprovação da religião alheia, dos valores que não são meus, precisa da aprovação dos agentes do Estado que vão me fornecer (ou negar) serviços como saúde, educação, segurança e justiça.
Atentem que não estamos falando em “dress code”, a roupa supostamente adequada para cada espaço, estamos falando de um julgamento severo e precipitado que é feito sobre o MEU CARÁTER e se eu mereço ou não ser respeitada apenas com base na roupa que uso.
Uma peça de roupa e dois exemplos: semana passada uma mulher teve seu acesso a um hemocentro negado, precisou utilizar um imenso avental enrolado ao corpo para DOAR SANGUE, ela estava usando um short jeans que uma atendente não considerou adequado; a revolta do shortinho que tomou algumas escolas de ensino médio no Rio Grande do Sul onde as adolescentes lutam pelo direito de frequentar a aula com seu short jeans. Gente… short jeans, sabe? Brasil, verão, entende? Vocês conhecem o verão de Porto Alegre? É um caldeirão. Boa parte do nosso país se transforma em um imenso forno nesta época e ainda assim meninas entre 13 e 17 anos tem de brigar, implorar, faltar à aula para tentar conquistar o direito de se vestir adequadamente tendo em vista a temperatura. São acusadas de estarem “querendo”, de serem muito assanhadas, de estarem lutando pelo direito “de mostrar a bunda”, de tirarem a concentração e a paz dos meninos e (HORROR!) de professores, homens adultos.
Socorro! Que mundo é esse? Nos olhos de quem está toda essa maldade? Não será hora de adultos doentes, que não podem ver um peito amamentando ou as pernas nuas de uma adolescente, buscarem ajuda psiquiátrica ao invés de exigir de nós que nos tornemos transparentes? Esses meninos com concentração tão frágil precisam de uma educação que os libertem também dessa visão deturpada do corpo feminino, precisam de pais, mães e professores que os ensinem a respeitar e que respeito não está condicionado a nada. Respeita-se. Ponto.
3 – O direito de ir e vir.
A Constituição cidadã e toda a legislação sobre direitos humanos garante a todos o direito de ir vir, o direito de circular, de se locomover em regiões pacíficas e desde que sigamos as normas legais vigentes. Não conheço legislação de países ocidentais que se pretendam civilizados que traga em seu texto: “mulheres, desde que acompanhadas de um homem.” Mas a regra que realmente vale é essa.
Duas mochileiras, duas jovens viajantes foram violentadas, espancadas até à morte e desovadas em uma praia. Sobre elas a imprensa salientava: viajavam sozinhas. Ainda que fossem duas, na nossa deturpada visão de mundo viajavam sozinhas. Que merda é essa?
Mulheres “de respeito” não vão a bares sozinhas mesmo que estejam com fome, com sede ou simplesmente querendo relaxar de um dia horrível, não fazem trilhas sozinhas, não estudam à noite se sabem que terão que andar sozinhas e não viajam sozinhas. Assim é que é.
As que ousarem fazer diferente serão humilhadas, ouvirão seu assédio, sentirão seu toque mesmo não querendo e muitas vezes pagarão com a vida.
Os direitos cotidianos que nos são negados podem não nos matar mas nos condenam a uma vida “menor”, menos livre, com menos possibilidades e experiências.
Oito de Março não é sobre como embelezamos o mundo com nossa sensibilidade, é sobre como o mundo doente em que vivemos pune as mulheres apenas por sua condição.
Por Liliane Araújo, diretora da UBM (União Brasileira de Mulheres) de Chapecó