“Um retrocesso de 20 anos”, “pá de cal” e “maracutaia”. Essas são algumas das formas que entidades ligadas à erradicação da escravidão contemporânea no país descrevem a nova portaria do Ministério do Trabalho (Nº 1129 de 13/10/2017) sobre o combate a esse crime. Publicada no Diário Oficial da União no dia 16 de outubro, o documento assinado pelo ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, reduz as situações que caracterizam o crime e dificulta a sua fiscalização.
A portaria sujeita a concessão de seguro-desemprego aos trabalhadores resgatados, que vem sendo pago desde 2003, e mesmo a validade da fiscalização a um novo conceito de trabalho escravo. Entre as novidades, está a necessidade de impedimento do direito de ir e vir para a caracterização do crime, tornando irrelevante as condições de trabalho às quais uma pessoa está submetida.
“A portaria acaba com o conceito de trabalho escravo contemporâneo, reconhecido pela Organização Internacional do Trabalho como um avanço por reconhecer a moderna escravidão,” diz Antônio Carlos de Mello, coordenador do programa de combate ao trabalho forçado da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil.
As fontes ouvidas pela reportagem atribuem a publicação da portaria à pressão histórica de entidades ligadas ao agronegócio, ao setor têxtil e à construção civil. O fato de a medida ter sido tomada sem uma discussão prévia também tem sido duramente criticado.
“Eles tentaram fazer isso através de lei no Congresso Nacional e não conseguiram, porque a sociedade não permitiu. Agora, estão tentando isso por outras formas,” diz a procuradora da República, Ana Carolina Roman.
Segundo ela, o Ministério Público estuda a possibilidade de entrar na Justiça contra a portaria, mesma possibilidade levantada pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra). “A portaria invade áreas que não são de competência do ministério. As ‘inovações’ são altamente questionáveis”, diz Guilherme Feliciano, presidente da associação.
Caio Magri, diretor executivo do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, também critica a falta de discussão. “Não se altera um artigo do Código Penal através de uma maracutaia”, diz Magri, referindo-se ao conceito de trabalho escravo previsto no artigo 149 do código.
Condições degradantes
A portaria anula “condições degradantes” como um dos quatro elementos que configuram trabalho análogo ao de escravo ao afirmar que essa situação só existe com cerceamento da liberdade.
“Com a nova portaria, só podemos considerar trabalho em condições degradantes se houver restrição de liberdade, com pessoas armadas ou isolamento geográfico que impeçam o trabalhador de ir e vir,” diz Antonio Mello.
De acordo com o representante da OIT, empregadores que deixavam de fornecer água potável, alimentação e descanso adequado antes podiam ser acusados de submeter pessoas a condição degradante. Isso era suficiente para caracterizar trabalho escravo. Mas, com a nova regra, essa configuração fica mais difícil.
“A portaria traz a ideia reducionista que escravo é a pessoa amarrada sem possibilidade de fugir. Essa é a ideia falsa utilizada no imaginário para tentar convencer que a legislação atual é exagerada,” diz Xavier Plassat, coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra.
Para Rafael Garcia Rodrigues, procurador do trabalho e ex-coordenador nacional de erradicação ao trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho, o objetivo dessa medida também é aniquilar o conceito de servidão por dívida, um dos que podem caracterizar o crime. “Só seria escravidão análoga se também tiver exceção no direito de ir e vir por pessoas armadas. É um retrocesso inacreditável.”
A portaria também estabelece que escravo só será aquele trabalho sem consentimento por parte do trabalhador. “Vincular o trabalho escravo ao consentimento do trabalhador é um retrocesso de no mínimo 50 anos,” diz Magno Riga, auditor fiscal do trabalho e membro do grupo especial de fiscalização móvel, responsável por checar denúncias e resgatar trabalhadores.
Para o auditor, o fato de um trabalhador ter aceitado trabalhar em um determinado local não significa que ele acatou previamente as condições de trabalho em que ele se encontra. Dessa forma, a ação estatal para retirá-lo daquele trabalho é necessária porque é pouco provável que ela saia da situação por si mesmo.
Assim, a medida restringe o próprio conceito de trabalho forçado, outro elemento que caracteriza o crime.
Um abaixo assinado está circulando nas mídias online pedindo a revogação da portaria.
Fonte: Repórter Brasil
Reportagem de Piero Locatelli e Thais Lazzeri
Foto: Sérgio Carvalho/Ministério do Trabalho
STF suspende medida que dificulta combate ao trabalho escravo
A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber suspendeu, dia 24 de outubro, em decisão liminar (provisória) a portaria do Ministério do Trabalho que modificava regras de combate e fiscalização do trabalho escravo.
Weber acolheu o pedido do partido Rede Sustentabilidade, que pedia a anulação dos efeitos da portaria. O partido argumentou que houve desvio de poder na edição da medida.
A liminar da ministra tem efeito até o julgamento do mérito da ação pelo plenário do tribunal, que não ainda não tem data marcada.
Fonte: G1, Brasília